9 - já não sei mais quem eu sou e se me encaixo na minha vida
ou: uma crise de final de ano
quando eu era criança não entendia muito o negócio de ano novo. achava uma festa mais chata, sem presentes e sem decorações específicas. também odiava a ideia de usar branco. lembro de um ano que resolvi ser edgy e usar preto, minha avó ficou muito brava mas sobrevivi. hoje entendo um pouco mais - acho que quando somos crianças não temos as rédeas da nossa vida… a única coisa que eu esperava após o ano novo era o momento mágico da compra de materiais escolares para o próximo ano letivo (isso não mudou). hoje sei que o ano novo é um momento de esperança e ilusão de que temos sim as rédeas da nossa vida (não temos) e que podemos controlar as mudanças. ou eu só sou muito pessimista.
agora que sou uma adulta mesmo, entendo porque a ideia de recomeço nos é tão atraente. depois de um ano de cão, é claro que quero beber pra cacete dia 31 e acreditar que em 2025 vou ter mais controle (não vou) e que vou conseguir seguir as metas e planos (talvez consiga). ainda não gosto muito dessa festa (a diferença entre dia 31 e dia 01 é só a ressaca - e a vibe legal de falar feliz ano novo! para deconhecidos) mas hoje, dia 23 de dezembro de 2024, estou ansiosa para deixar esse ano para trás e sentir que estou mais perto do meu tão desejado controle, mesmo que seja por apenas algumas horas.
esse ano vivi coisas maravilhosas e vivi no fundo do poço também. minha vida chegou muito perto do momento que sempre sonhei - ser uma pesquisadora “de verdade”, viajar para congressos com verba paga pela universidade…, estar com amigos novos e antigos nesses processos. esse ano foi um sonho. me encontrei no lugar que estou e hoje consigo ver um futuro que antes não estava tão claro. sou grata por ter escolhido esse figo entre os outros que me foram oferecidos. mas também vivi coisas horríveis esse ano. tive o que minha psicóloga chamou de crise de ansiedade severa, algo que se grudou em mim quase como um carrapato nas últimas semanas. tive que passar por momentos de ruptura que ainda não sei como se resolverão. senti que a minha vida sonhada de pesquisadora exige muito de mim, e que todos os contextos em que estou inserida - amigos, família, trabalho - exigem muito de mim, mas que meu maior problema sou eu mesma. aos 45 do segundo tempo, entendi que não estou tentando me provar para ninguém além de mim mesma, uma eduarda perversa que vive para me criticar. entendi que em geral, as pessoas não ligam tanto e, quando ligam, normalmente é porque se importam o bastante para apoiar.
tem um jargão bem comum na faculdade de história, o famoso dito de Heráclito: ninguém entra duas vezes no mesmo rio, porque as águas não são as mesmas e tampouco quem entra. a frase não é exatamente assim, mas é algo nesse sentido. eu tenho pensado no quanto esse ano me mudou, em como tenho certeza de partes de mim ao mesmo tempo que desconheço outras. algumas partes me agradam, outras me assustam. a grande verdade é que eu não tenho ideia de onde estou. me sinto em um corredor escuro , com um isqueiro barato que não ilumina nada. eu não sei onde vou pisar a seguir, não sei o quão longo é o caminho e não tenho ideia do que me aguarda adiante.
ironicamente, no começo de 2024, minha carreira é que me parecia incerta - era com a minha carreira que eu estava pisando em ovos, apavorada com o que vinha em seguida e com o que me esperaria no futuro. talvez eu tenha apostado todas as minhas fichas - o meu amor, minha dedicação, minha energia - na minha carreira. talvez a escolha entre vida pessoal e carreira tenha sido inconsciente. então agora, 23 de dezembro, eu já não sou a mesma eu de janeiro, tampouco a mesma eu de 2019. acordei diferente a cada dia e não sei o quão reconhecível ainda sou. e ainda que eu tenha tomado todas essas decisões, eu não estou no controle da mudança. eu escolho mas não sei o quanto essa escolha vai me transformar. eu não sei como estarei amanhã, ou daqui três meses ou em dez anos.
eu sinto que nos últimos meses passei por um monte de pequenas metamorfoses - voltar à terapia, decidir - finalmente - sair da casa da minha mãe, comer carne depois de 6 anos - e acabou que grandes mudanças são feitas de pequenos detalhes, ao mesmo tempo que não me sinto mudada em nada.
“Y oigo una voz que dice sin razón
"Vos siempre cambiando ya no cambias más"
Y yo estoy cada vez más igual
Ya no sé que hacer conmigo”Ya no sé que hacer conmigo, El cuarteto de nos
será que mudei tanto que já nem mudo mais? eu certamente não sei o que fazer comigo. não sei o quanto da minha ansiedade é desespero pelo hábito - pela construção de uma nova rotina - e de me adequar a essa nova vida que tanto sonhei. mas a vida não espera, não fica paradinha esperando você se adequar. nesses momentos de caos, a vida dá aquele solavanco do trem antes de partir, aquele que se você não tiver ligeiro pode te derrubar. a vida não está esperando eu me recuperar da ansiedade ou do final do semestre, meus prazos continuam aqui, meus problemas também. e nesse meio tempo todos os detalhes vão sendo substituídos de forma rápida e eficiente, e quando você se recupera dessa queda parece que tudo já mudou e que você já não faz parte daquele universo.
será que dá para mudar junto? me pergunto se cada uma das minhas pequenas metamorfoses me afastou um pouquinho da minha vida. me questiono se vários pouquinhos se transformam em uma distância impossível de acompanhar. será que minhas mudanças me transformaram em alguém tão alienígena que a única coisa igual é meu corte de cabelo - que fiz questão de manter - e minha cor favorita? quanto tempo até eu mudar de novo?
tenho um post it colado na minha parede com um trecho de um dos vários livros de arqueologia do colonialismo que venho lendo para minha dissertação. esse trecho, no entanto, é algo que estou tentando internalizar para todos os aspectos da minha vida:
“a mudança é, talvez, a mais previsível das constantes”
minha avó é uma pessoa meio pessimista - assim como eu - e desde criança eu escuto ela dizer que a única certeza que nós temos é da morte. me baseando no meu livro de teoria, posso acrescentar ao dito da minha vó que a mudança também é uma das certezas que temos dessa vida. não escrevo isso em paz porque a ideia de uma constante mudança - sobre a qual não tenho controle algum - me assusta e muito. só que todo esse caráter imprevisível e assustador das mudanças é acompanhado de um certo conforto de saber que sim, as coisas mudam. as pessoas mudam. a vida muda. e pode ser para melhor. pensar nessa constância das mudanças me é um tapa e um afago ao mesmo tempo, quase como um exercício diário para me lembrar que o controle que temos da vida é bem pequeno. quase nulo.