tudo que foi perdido na tradução
ou: fragmentos sobre amor, significado e outras sutilezas
sentimentos são interpretações. amor, para mim, não é o mesmo que é para meu melhor amigo, para minha mãe ou para o porteiro do meu prédio. temos um entendimento básico de amor, mas todas as sutilezas desse sentimento são particulares a cada indivíduo. amor é aconchego do meu pet na minha cama em um dia frio. amor é meu melhor amigo me abraçar enquanto choro copiosamente. amor é eu ouvir minha mãe falar por horas mesmo quando prefiro ficar quieta.
os sentimentos têm significados distintos de pessoa para pessoa e, quando demonstramos o que sentimos, muito se perde, porque o entendimento do outro é uma tradução. da mesma forma que um antropólogo se dedica à tradução de culturas distintas, quando nos relacionamos com os outros precisamos de um pouco desse viés antropológico - precisamos traduzir o outro, entendê-lo. traduzimos os sentimentos do outro para nossa própria linguagem - mas muito se perde na tradução.
as coisas não são, elas estão. apesar de odiar a língua inglesa, eu gosto da ideia do verbo to be ter os dois significados: ser e estar. a efemeridade das coisas é nossa única garantia. mudança é, talvez, a constante mais previsível. não há felicidade que nunca acabe e nem tristeza que dure para sempre. hoje somos, amanhã não mais. como diz a minha avó, o futuro a deus pertence. conceber as coisas em sua finitude parece meio pessimista, mas acredito que é a única forma de efetivamente viver. o eterno tem significados distintos - é eterno o que expandimos grotescamente, forçadamente? ou é eterno aquilo que tem uma duração predeterminada - e data de validade - mas que vive para sempre em nós? o amor de um mês é tão amor quanto o amor de anos? o que o caracteriza como amor? sua intensidade ou sua duração? ele ser ou estar?
ser amado é ser lembrado. ser amado é ser conhecido. ser amado é ser reconhecido. você me ama quando lembra de mim vendo um desenho do esnupi. eu te amo quando vejo o ônibus que você pega e automaticamente penso em você. eu te amo quando quero saber seus filmes favoritos, suas músicas favoritas, o nome do seu gato na infância, seus maiores sonhos e o que você gosta na cama. te amo quando seus filmes favoritos ainda são importantes para mim - apesar da distância. em outros casos, o amor nem existe mais
me pergunto se sequer existiu, ou se foi delíriomas as canções continuam entre as minhas playlists no spotify. em agosto vou ao show da lupe de lupe, mas nem sei por onde anda quem me apresentou a banda. somos também feitos dos caquinhos das pessoas que passaram por nossa vida.intimidade significa diferentes coisas para diferentes pessoas. para uns, sexo é questão de atração física, para outros, demanda conexão emocional. para uns, pode ser casual, para outros, é pressuposto de intimidade, de entrega. é curioso explorar essas nuances, observar e sentir como as pessoas concebem esse ato que é um dos mais instintivos mas também um dos mais simbólicos em nossa sociedade cujos ideais se baseiam no cristianismo ocidental. é curioso observar como sexo tem significados distintos para homens e mulheres, na teoria, mas que na prática, em geral, a natureza vence e os pensamentos se desligam. esses momentos/fluídos/sensações/sentimentos compartilhados não têm o mesmo significado. não são, mas estão. os sentimentos se confundem com as sensações. as reações químicas em nosso cérebro são confusas e os sentimentos do outro são um enigma. sexo não tem o mesmo significado para todo mundo, e é algo que só se entende na prática. os toques são diferentes, o que agrada e o que desagrada, também. é uma comunicação única, um dialeto compartilhado. não é uma língua, como o amor, porque não exige tanta complexidade e comprometimento. mas ainda assim é diferente a cada vez.
me leve para sair hoje à noite - não me importa para onde. era o nome da playlist que fiz. foram algumas semanas nessa troca - aprendizado - de um idioma. nos entendíamos em partes, o suficiente para uma comunicação rudimentar. esse idioma não se tornou complexo - é uma língua natimorta. existiu, nós dois criamos, eu desisti dela. apaguei os registros - não há uma gramática e nem exemplos. algumas músicas me lembram das madrugadas cantando alto no carro e das vezes que dormimos ouvindo suas músicas no aleatório. não há mais nenhum vestígio do que foi - apenas o não-dito. não foi preciso dizer, no entanto. boa sorte, querido.
eu entendo que o amor não é a solução de todos os problemas ou o objetivo final das nossas vidas. e que o amor assume diferentes formas. um bar com os amigos é amor. tomar café domingo cedo criticando o capitalismo, também. chorar ou rir juntos. parando para pensar, quase tudo que sei sobre o amor, aprendi com meus amigos.
já aceitei a ideia de que o outro em sua totalidade é inacessível. assim como é impossível traduzir saudade para outro idioma, nunca teremos acesso total ao outro. será sempre uma interpretação nossa, um fragmento, uma camada. o que nos é dito também é interpretação, o que não é dito é suposição. as ações também são traduções nossas. para mim, beijo na testa significa x, para ele significa y. esses significados se confrontam, mas não se traduzem. não são equivalentes. ele me beija dizendo y, eu recebo o beijo entendo x. x e y não são equivalentes. podem ser, mas nem sempre são. o amor se constrói nesse idioma compartilhado, nessas equivalências e sobreposições. às vezes algo se sobrepõe, mas isso não significa amor. é acaso. coincidência. amor precisa de entendimento, não de coincidência.
ela me beija na estação vergueiro. na estação da luz. não foram os primeiros beijos que dei numa linha de metrô, mas foram os primeiros com um pouco de receio. medo de alguém falar algo, medo de alguém fazer algo. não sei se ela sentiu o mesmo. não a amo - eu sei - mas meu coração acelera com a ideia de beijá-la de novo. fiquei ansiosa para segurar sua mão em nosso segundo encontro. me pergunto como ela me percebe - como ela me traduz. ainda me é estranho ter esse tipo de interação com outra mulher; é como se tudo que eu sei sobre encontros e sobre flerte fosse jogado fora. a lógica é outra. o toque é outro. as dinâmicas são outras. não houve nenhum momento que eu revirei meus olhos ou senti vergonha alheia. ela soube como me beijar. mas eu não sei traduzir. não ainda.
esse foi um texto diferente. tenho escrito esses pequenos pensamentos e decidi fazer um compilado, que decidi chamar caderninhos. escrevo essas coisas nas notas do celular, em geral no ônibus ou em qualquer lugar que tenha esses insights. a ideia de tradução é algo muito comum na minha vida - trabalho com uma cultura que não é a minha.
acho que esse formato de texto vai ser bastante recorrente porque ultimamente tenho estado pouco inspirada pra escrever os textos longos. mas acho que teremos algumas experiências etnográficas (risos) esse mês, então talvez venha alguns textos sobre algumas primeiras vezes…